O texto original, de autoria de Paulo Nogueira (1956 – 2017), foi publicado no Diário do Centro do Mundo.
A filosofia existe para que as pessoas possam viver melhor. Sofrer menos. Lidar melhor com as adversidades. Enfrentar serenamente o “perpétuo vai-e-vem de elevações e quedas”, para citar uma grande frase de um filósofo da Antiguidade. A missão essencial da filosofia é tornar viável a busca da felicidade. Todos os grandes pensadores sublinharam esse ponto. A filosofia que não é útil na vida prática pode ser jogada no lixo. Alguém definiu os filósofos como os amigos eternos da humanidade. Nas noites frias e escuras que enfrentamos no correr dos longos dias, eles podem iluminar e aquecer. A filosofia apóia e consola.
Um aristocrata romano chamado Boécio (480-524) era rico, influente, poderoso. Era dono de uma inteligência colossal: traduziu para o latim toda a obra de Aristóteles e Platão. Tudo ia bem. Até o dia em que foi acusado de traição pelo imperador e condenado à morte. Foi torturado. Recebeu a marca dos condenados à morte de então: a letra grega Theta queimada na carne. Boécio recorreu à filosofia, em que era mestre, para enfrentar o suplício. Entre a sentença e a morte, escreveu em condições precárias um livro que se tornaria um clássico da literatura ocidental: A Consolação da Filosofia. Tudo de que ele dispunha para escrevê-lo eram pequenas tábuas e estiletes. Isso lhe foi passado, para dentro da cela, por amigos. “A felicidade pode entrar em toda parte se suportarmos tudo sem queixas”, escreveu ele.
A filosofia consola, mostrou em situação extrema Boécio. E ensina. E inspira. Sim, os filósofos são os eternos amigos da humanidade.
Considere Demócrito, pensador grego do século 5 a.C. Ele escreveu um livro chamado Sobre o Prazer. Primeira frase do livro: “Ocupe-se de pouco para ser feliz”. Gênio. Gênio total. A palavra grega para tranqüilidade da alma é euthymia, A recomendação básica de Demócrito, sob diferentes enunciados, é encontrada em muitos outros filósofos. Sobrecarregar a agenda equivale a sobrecarregar o espírito, e traz inevitavelmente angústia. Ninguém que tenha muitas tarefas pode ser feliz.
Um sábio da Antiguidade não abria nenhuma correspondência depois das quatro horas da tarde. Era uma forma de não encontrar mais nenhum motivo de inquietação no resto do dia, que ele dedicava a recuperar a calma que perdera ao entregar-se ao seu trabalho. Olhemos para nós, e nos veremos com freqüência abrindo mensagens no computador alta noite, e não raro nos perturbando por seu conteúdo. O único resultado disso é uma noite mal dormida.
Fazemos muitas coisas desnecessárias. Coloque num papel as atividades de um dia. Depois veja o que realmente era preciso fazer e o que não era. A lista das inutilidades suplanta quase sempre a das ações imperiosas. O imperador filósofo romano Marco Aurélio, do começo da Era Cristã, louvou a frase de Demócrito em suas clássicas Meditações. Acrescentou que devemos evitar não apenas os gestos inúteis, mas também os pensamentos desnecessários. Marco Aurélio recomendava o formidável exercício de conduzir a mente, quando agitada, para pensamentos aquietadores. Isso conseguido, controlamos a mente, esse cavalo selvagem, em vez de sermos controlados por ela.
Sêneca escreveu sobre o assunto com imensa graça e espírito. Sêneca usou as expressões “agitação estéril” e “preguiça agitada” ao tratar dos atos que nos trazem apenas desassossego. “É preciso livrar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a maioria dos homens”, escreveu Sêneca. “Eles vagam ao acaso, mendigando ocupações. Suas saídas absurdas e inúteis lembram as idas e vindas das formigas ao longo das árvores, quando elas sobem até o alto do tronco e tornam a descer até embaixo, para nada. Quantas pessoas levam uma existência semelhante, que se chamaria com justiça de preguiça agitada?”
Agimos como formigas quase sempre, subindo e descendo sem razão o tronco das árvores, e pagamos um preço alto por isso: ansiedade, aflição, fadiga física e mental. Nossa agenda costuma estar repleta. É uma forma de fugir de nós mesmos, como escreveu sublimemente um poeta romano. Eliminar ao menos algumas das tantas tarefas inúteis que nos impomos a cada dia é vital para a euthymia da qual falavam os sábios gregos.
Outro ponto essencial recomendado pelos filósofos para a vida feliz é aceitar os tropeços. É o principal ensinamento do filósofo Zenão e seus discípulos. Nascido em 333 a.C. na ilha de Chipre, filho de pais ricos, Zenão fundou em Atenas uma escola de filosofia que dominou o mundo culto por séculos e cujos fundamentos influenciaram a doutrina cristã: o estoicismo. Tão forte é a filosofia estóica que “estóico” virou sinônimo de bravura na adversidade. Segundo o mais admirado dicionário de inglês, o Oxford, estóico é quem se porta com serenidade diante do revés ou do triunfo. Nem vibra na vitória e nem se deprime na derrota.
Zenão perdeu todo o seu patrimônio num naufrágio. Seu comentário ao receber a informação: “O destino queria que eu filosofasse mais desembaraçadamente”. O nome da escola deriva da palavra grega “stoa”, pórtico. Zenão, alto, magro, o pescoço ligeiramente inclinado, pregava suas idéias num pórtico erguido pelos atenienses para celebrar a vitória na guerra sobre os persas. Esse pórtico era colorido com imagens de gregos derrotando os bárbaros. Na Atenas de então, era comum discutir filosofia em locais públicos, mas a escolha do pórtico por Zenão parece carregada de simbolismo: o triunfo da sabedoria sobre a brutalidade.
O estoicismo defendia uma vida de acordo com a natureza. Simplicidade no vestuário, na comida, nas palavras, no estilo de vida. E a aceitação de tudo que possa ocorrer de ruim. Agastar-se contra as circunstâncias apenas piora o estado de espírito da pessoa: essa a lógica da aceitação, ou resignação, que viria a ser um dos pilares do cristianismo. O lema estóico: abstenha-se e aceite. O apreço pela vida de acordo com a natureza Zenão aprendeu com seu mestre em filosofia, Crates. Crates era da escola cínica. Os cínicos defendiam a simplicidade tanto quanto os estóicos, e não é difícil entender por que a posteridade ignorante lhes atribuiu um sentido pejorativo: é que eles eram extraordinariamente irreverentes. O mais notável filósofo cínico, Diógenes, certa vez se masturbou em público. Explicou aos que o interpelavam: “Gostaria de saciar minha fome esfregando o estômago”.
Não sobrou livro nenhum de Zenão. Atribuem-se a ele frases, das quais uma das melhores diz: “A natureza nos deu dois ouvidos e apenas uma boca para que ouvíssemos mais e falássemos menos”. Zenão se matou aos 72 anos. Para os estóicos, o suicídio – sem lamúrias, sem queixas – era uma retirada digna e honrosa quando a pessoa já não encontrasse razões para viver. Sabe-se de sua morte pelo biógrafo Diógenes Laércio, autor de Vida dos Filósofos. Zenão tropeçou e se machucou, segundo Diógenes Laércio. Em seguida citou um verso de um autor grego chamado Timóteo: “Eis-me aqui: por que me chamas?”
Nascido escravo e só liberto depois de adulto, Epitecto foi uma das vozes mais influentes da filosofia da Antiguidade. Ele viveu nos primórdios da Era Cristã, de 40 a 125. Não escreveu um único livro. Seu pensamento é conhecido graças a um discípulo, o historiador Arriamo. Arriamo teve o cuidado de anotar as idéias de seu mestre, e depois transformá-las em dois livros, Entretenimentos e Manual. Seu tamanho intelectual é tal que o imperador filósofo Marco Aurélio escreveu que um dos acontecimentos capitais de sua vida foi ter tido acesso às obras de Epitecto.
Para ele, o passo básico da vida feliz é aceitar as coisas como elas são. Revoltar-se contra os fatos não altera os fatos, e ainda traz uma dose de tormento desnecessária. “Não se deve pedir que os acontecimentos ocorram como você quer, mas deve-se querê-los como ocorrem: assim sua vida será feliz”, disse Epitecto. (Séculos depois, o pensador francês Descartes escreveu uma frase que é como um tributo à escola de Epitecto: “É mais fácil mudar seus desejos do que mudar a ordem do mundo”.) Não adianta se agastar contra as circunstâncias: elas não se importam. Isso se vê nas pequenas coisas da vida. Você está no meio de um congestionamento? Exasperar-se não vai dissolver os carros à sua frente. Caiu uma chuva na hora em que você ia jogar tênis com seu amigo? Amaldiçoar as nuvens não vai secar o piso. Que tal uma sessão de cinema em vez do tênis?
Outro ensinamento seu crucial é que só devemos nos ocupar efetivamente daquilo que está sob nosso controle. Você cruza uma manhã com seu chefe no elevador e ele é efusivo. Você ganha o dia. Você o encontra de novo e ele é frio. Você fica arrasado. Daquela vez ele estava bem-humorado, daí o cumprimento caloroso, agora não. O estado de espírito de seu chefe não está sob seu controle. Você não deve nem se entusiasmar com tapas amáveis que ele dê em suas costas e nem se deprimir com um gesto de frieza. Você não pode entregar aos outros o comando de seu estado de espírito.
“Não é aquele que lhe diz injúrias quem ultraja você, mas sim a opinião que você tem dele”, disse Epitecto. Se você ignora quem o insulta, você lhe tira o poder de chateá-lo, seja no trânsito, na arquibancada de um estádio de futebol ou numa reunião corporativa. Não são exatamente os fatos que moldam nosso estado de espírito, pregou Epitecto, mas sim a maneira como os encaramos. Um dos desafios perenes da humanidade, e as palavras de Epitecto são uma lembrança eterna disso, é evitar que nossa opinião sobre as coisas seja tão ruim como costuma ser. A mente humana parece sempre optar pela infelicidade.
Outra lição essencial dos filósofos é não se inquietar com o futuro. O sábio vive apenas o dia de hoje. Não planeja nada. Não se atormenta com o que pode acontecer amanhã. É, numa palavra, um imprevidente. Eis um conceito comum a quase todas as escolas filosóficas: o descaso pelo dia seguinte. Mesmo em situações extremas. Um filósofo da Antiguidade, ao ver o pânico das pessoas com as quais estava num navio que chacoalhava sob uma tempestade, apontou para um porco impassível. E disse: “Não é possível que aquele animal seja mais sábio que todos nós”.
O futuro é fonte de inquietação permanente para a humanidade. Tememos perder o emprego. Tememos não ter dinheiro para pagar as contas. Tememos ficar doentes. Tememos morrer. O medo do dia de amanhã impede que se desfrute o dia de hoje. “A imprevidência é uma das maiores marcas da sabedoria”, escreveu Epicuro. Nascido em Atenas em 341 AC, Epicuro, como os filósofos cínicos, foi uma vítima da posteridade ignorante. Pregava e praticava a simplicidade, e no entanto seu nome ficou vinculado à busca frívola do prazer.
Somos tanto mais serenos quanto menos pensamos no futuro. Vivemos sob o império dos planos, quer na vida pessoal, quer na vida profissional, e isso traz muito mais desassossego que realizações. O mundo neurótico em que arrastamos nossas pernas trêmulas de receios múltiplos deriva, em grande parte, do foco obsessivo no futuro. Há um sofrimento por antecipação cuja única função é tornar a vida mais áspera do que já é. Epicuro, numa sentença frequentemente citada, disse que nunca é tarde demais e nem cedo demais para filosofar. Para refletir sobre a arte de viver bem, ele queria dizer. Para buscar a tranquilidade da alma, sem a qual mesmo tendo tudo nada temos a não ser medo. Também nunca é tarde demais e nem cedo demais para lutar contra a presença descomunal e apavorante do futuro em nossa vida. O homem sábio cuida do dia de hoje. E basta.
Baseado nos textos dos grandes filósofos, elaborei uma lista de recomendações práticas:
Heráclito e Demócrito foram dois grandes filósofos gregos da Antiguidade. Diante da miséria humana, Heráclito chorava. Demócrito ria.
No correr dos dias nós vemos uma série infinita de absurdos e de patifarias. Alguém a quem você fez bem retribui com ódio. A inveja parece onipresente. Você tropeça e percebe a alegria maldisfarçada dos inimigos e até de amigos. A hipocrisia é dominante. As decepções se acumulam. Até seu cachorro se mostrou menos confiável do que você imaginava. Em suma, a vida como ela é. Diante de tudo isso, as alternativas estão basicamente representadas nas atitudes opostas de Heráclito e Demócrito. Você pode chorar. E dedicar o resto de seus dias a movimentos que alternam gemidos de autopiedade e consumo de antidepressivos de última geração. Ou então você pode rir. Sêneca comparou a atitude de Heráclito e Demócrito para fazer seu ponto: ria das coisas, em vez de chorar.
Mesmo o alemão Schopenhauer, o filósofo do pessimismo, reconhece sabedoria na jovialidade. No seu livro Aforismos para a Sabedoria de Vida, Schopenhauer, que viveu no século XIX, escreveu: “Acima de tudo, o que nos torna mais imediatamente felizes é a jovialidade do ânimo, pois essa boa qualidade recompensa a si mesma de modo instantâneo. Nada pode substituir tão perfeitamente qualquer outro bem quanto essa qualidade, enquanto ela mesma não é substituível por nada”.
Cícero, romano, e Demóstenes, grego, foram os dois maiores oradores da Antiguidade. Cícero nasceu com o dom. Demóstenes é uma prova do poder do esforço. Foi graças ao treinamento persistente que Demóstenes se elevou à imortalidade como um símbolo da força das palavras. Demóstenes, natural de Atenas, era de uma família rica. Seu pai morreu quando ele tinha 8 anos. A herança opulenta foi dilapidada por seus tutores, parte por má fé, parte por inépcia. Demóstenes, quando era garoto, assistiu a um julgamento no qual um orador chamado Calístrato teve um desempenho brilhante e, com sua verve, mudou um veredicto que parecia selado. (Orador, lá para trás, era uma espécie de advogado de hoje.)
Esse episódio foi assim narrado por um historiador: “Demóstenes invejou a glória de Calístrato ao ver a multidão escoltá-lo e felicitá-lo, mas ficou ainda mais impressionado com o poder da palavra, que parecia capaz de levar tudo de vencida”. Ele entrou numa escola de oratória. Assim que pôde, processou seus tutores. Ganhou a causa. Mas estava ainda longe de ser notável. Um dia, desanimado, desabafou com um amigo ator. Gente bem menos preparada que ele provocava melhor impressão nas pessoas. O amigo pediu-lhe que recitasse um trecho de Eurípedes ou de Sófocles, dois gigantes do teatro grego. Demóstenes recitou. Em seguida, o amigo leu o mesmo trecho, com o tom dramático de um ator. Era a mesma coisa, e ao mesmo tempo era tudo inteiramente diferente.
Demóstenes montou então uma sala subterrânea na qual se enfiava todo dia por demoradas horas para treinar, treinar e ainda treinar. Chegava a raspar um dos lados da cabeça para não poder sair de casa e, assim, praticar sem parar. Para aperfeiçoar a dicção, Demóstenes punha pequenas pedras na boca enquanto falava. Fazia também parte de seu treinamento declamar em plena corrida. Olhava-se num grande espelho para ver se sua expressão causava impacto. “Vem daí a reputação de não ter sido bem dotado pela natureza e só haver adquirido habilidade e força oratória pelo trabalho incansável”, escreveu um biógrafo.
Quando a Grécia foi ameaçada por Felipe, rei da Macedônia, a voz de Demóstenes ergueu-se em defesa de seu país. Mais que o exército grego, Felipe, pai de Alexandre, o Grande, temeu a voz de Demóstenes. Demóstenes retardou, mas não impediu a queda dos gregos. Fugiu de Atenas para não ser morto, mas estava perdido. Para não ser capturado pelos inimigos que o caçavam, matou-se com veneno. Mais tarde, os atenienses construíram uma estátua para ele na qual gravaram uma sentença célebre: “Se tivesses tido força igual à tua vontade, Demóstenes, o guerreiro macedônico jamais dominaria a Grécia”.
Uma das questões presentes desde sempre para a humanidade é a seguinte: como se expressar? Na vida profissional ou amorosa, numa apresentação de trabalho a seus chefes na empresa ou numa mera conversa de bar, comunicar-se bem faz toda a diferença. Muitos sábios se detiveram nesse tema. Quase todos condenaram a eloqüência desmedida, a suntuosidade verbal. A opção é pela simplicidade e pela brevidade. Uma pessoa afetada na maneira de falar ou escrever é afetada em outras esferas. “A verdade precisa falar uma linguagem simples, sem artifícios”, escreveu um filósofo da Antiguidade.
O filósofo francês Montaigne, do século XVI, dedicou linhas brilhantes ao assunto em seus Ensaios. Montaigne conta duas histórias instrutivas e divertidas. Numa delas, os embaixadores de uma cidade grega tentavam convencer o rei de Esparta a aderir a um esforço de guerra. O espartano deixou-os falar longamente. Depois disse: “Não me lembro do começo nem do meio da argumentação de vocês. Quanto à conclusão, simplesmente não me interessa”. Na outra história, dois arquitetos atenienses disputavam a honra de construir um grande edifício. A platéia à qual cabia a escolha ouviu um extenso discurso do primeiro arquiteto. As pessoas já se inclinavam por ele quando o segundo disse apenas: “Senhores atenienses, o que este acaba de dizer eu vou fazer”.
Montaigne cita seu pensador predileto, o romano Sêneca, segundo o qual nos grandes arroubos da eloqüência há “mais ruído que sentido”. Escreveu Montaigne: “Gosto de uma linguagem simples e pura, a escrita como a falada, e suculenta, e nervosa, breve e concisa, não delicada e louçã, mas veemente e brusca.” Os espartanos eram admirados por Montaigne pela simplicidade com que viviam e se expressavam. Ele conta que uma vez perguntaram a uma autoridade de Esparta por que não colocavam por escrito as regras da valentia para que os jovens pudessem lê-las. A resposta foi que os espartanos queriam acostumar seus jovens antes aos feitos que às palavras. Outro mestre de Montaigne, Plutarco, autor de Vidas Paralelas, mostrou que falar demais pode ser perigoso. “A palavra expõe-nos, como nos ensina o divino Platão, aos mais pesados castigos que deuses e homens podem infligir”, disse Plutarco. “Mas o silêncio jamais tem contas a dar. Não só não causa sede como confere um traço de nobreza.”
Montaigne disse que quando queria lidar com o medo da morte recorria a Sêneca. Não por acaso. Ninguém se deteve de forma tão profunda e brilhante sobre a maior das aflições humanas: o medo da morte. Sêneca, numa carta a um discípulo, escreveu uma frase célebre: “E por mais que te espantes, aprender a viver não é mais que aprender a morrer”. Sêneca pregava o desprezo pela morte. Não por morbidez ou por pessimismo. É que quem despreza a morte vive, paradoxalmente, melhor. Sobre sua alma não pesa o terror supremo da humanidade: o fim da vida. “Parece inacreditável, mas muita gente morre do medo de morrer”, escreveu Sêneca.
Pensar na morte, regularmente, é a primeira e maior recomendação de Sêneca. Os romanos tinham o seguinte provérbio: “Memento mori”. Que quer dizer: lembre-se de que vai morrer. Não há como escapar. E no entanto nos atormentamos o tempo todo por algo que com certeza, um dia, se realizará. Esse tormento contínuo nos impede de viver bem. Outro romano, Lucrécio, escreveu: “Onde a morte está, não estou. Onde estou, a morte não está”. Encontramos uma maneira similar de lidar com a morte nas filosofias orientais. O asceta Milarepa, uma das maiores figuras do budismo, vivia perto de um cemitério para jamais esquecer que um dia iria morrer.
Sêneca, em suas obras, evocou com freqüência a bravura de personalidades históricas diante da morte. Sócrates, perante a perspectiva de tomar cicuta, manteve a calma e o humor. Consolou os discípulos em vez de ser consolado, episódio que Platão, o maior deles, registrou em sua obra-prima, Fédon. “Chegou a hora de partir, vocês para a vida, eu para a morte”, disse Sócrates na hora de execução de sua sentença, segundo Platão. “Qual dos dois destinos é melhor, ninguém sabe.” Sêneca mostrou a mesma bravura das pessoas que tanto citou. Acusado de conspiração, recebeu do tirano romano Nero, de quem tinha sido preceptor, a sentença de se matar. Na perpétua instabilidade da sorte, Sêneca passara de homem forte do reinado de Nero (antes que este ficasse louco) a renegado. Como Sócrates, confortou os amigos e familiares que o cercavam desesperados no momento derradeiro. Cortou os punhos e se deixou levar serenamente.
Marco Aurélio, que comandou o mundo no último grande momento de Roma, foi um imperador filósofo. Como imperador, nos primórdios da Era Cristã, Marco Aurélio conduziu uma Roma já ameaçada a um período dourado. Como filósofo, escreveu, em geral em acampamentos de guerra, reflexões para si próprio, frases curtas e profundas que giravam sobre a efemeridade da glória e da vida. Um discípulo, depois da morte de Marco Aurélio, juntou-as num livro ao qual deu o nome de Meditações. O pensador francês Ernest Renan, do século 19, disse que os seres humanos estariam sempre de luto por Marco Aurélio. Sugestão do imperador filósofo para o começo de cada dia: “Previna a si mesmo ao amanhecer: vou encontrar um intrometido, um mal agradecido, um insolente, um astucioso, um invejoso, um avaro”.
Marco Aurélio é útil para uma infinidade de situações cotidianas. Somos extraordinariamente suscetíveis à idéia da glória, e é um convite ao bom senso ouvir, a esse respeito, quem foi o dono do mundo. A arrogância, mostra ele, sustenta-se apenas na ignorância e na ilusão. “Cada um vive apenas o momento presente, breve. O mais da vida, ou já se viveu ou está na incerteza. Exíguo, pois, é o que cada um vive. Exíguo, o cantinho da terra onde vive. Exígua, até a mais longa memória na posteridade, essa mesma transmitida por uma sucessão de homúnculos morrediços, que nem a si próprio conhecem, quanto menos a alguém falecido há muito.”
Marco Aurélio legou á posteridade exemplos memoráveis. Descoberta uma conspiração e executado sem seu conhecimento o traidor, ele lamentou a perda da chance de perdoá-lo. Entregaram-lhe a correspondência do conspirador. Ele queimou-a sem lê-la. Sua atitude diante da discórdia é inspiradora. Estamos a toda hora brigando com alguém e sendo tomados por sentimentos de rancor e aversão. Em suas anotações, Marco Aurélio disse com majestosa sabedoria: “Sempre que você se desentender com alguém, lembre que em pouco tempo você e o outro estarão desaparecidos”. É um dos chamamentos à paz e à concórdia mais simples e mais eficientes.
Envelhecer é um pesadelo para as pessoas. Há uma luta inútil e muitas vezes patética pela juventude eterna. Muitos filósofos se detiveram sobre o tema e se esforçaram por nos ajudar a lidar melhor com a passagem do tempo. Um deles foi Cícero, símbolo supremo da oratória. Em sua obra Saber Envelhecer, Cícero enumera as vantagens desprezadas da velhice. Na dedicatória, ele diz: “Senti tal prazer em escrever que esqueci os inconvenientes dessa idade; mais ainda, a velhice me pareceu repentinamente doce e harmoniosa”.
Cícero começa por um fato incontestável: “Todos os homens desejam alcançar a velhice, mas ao ficarem velhos se lamentam. Eis aí a conseqüência da estupidez”. Depois ele toca num ponto crucial: uma vez que a sorte instável ora nos ergue e ora nos derruba, o que muda mesmo é a maneira com que cada um de nós lida com sua cota de infortúnios. Afirma Cícero: “Os velhos inteligentes, agradáveis e divertidos suportam facilmente a idade, ao passo que a acrimônia, o temperamento triste e a rabugice são deploráveis em qualquer idade”.
Cícero é mordaz e divertido. Quando toca na questão da alardeada perda de memória dos anciões, ele contrapõe: “A memória declina se não a cultivamos ou se carecemos de vivacidade de espírito. Os velhos sempre se lembram daquilo que os interessa: promessas, identidade de seus credores e devedores etc”. Permanecer intelectualmente ativo é uma forte recomendação dele. Cícero lembra que, no fim da vida, Sócrates aprendeu a tocar lira. “Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso preciso e a natureza dota cada idade de suas qualidades próprias. Por isso, a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.”
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