Em 1935, a antropóloga americana Margaret Mead publicou um dos mais notáveis livros de sua longa carreira. Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas, obra que tem como base uma extensa pesquisa de campo realizada entre os povos Tchambuli, Mundugumur e Arapesh, foi um marco da Antropologia e, por mais que Mead insista no prefácio que não se trata de um livro feminista, bem, ele definitivamente o é.
E por quê?, você perguntaria. Porque o principal intuito da pesquisadora é provar que as supostas diferenças de temperamento entre homens e mulheres são apenas fabricações da sociedade, e que tendem a variar entre povos diferentes.
As três sociedades investigadas por Mead expressam por si só tais divergências. Tanto os homens quanto as mulheres pertencentes aos Arapesh tendiam a possuir a complacência e a doçura, assim como o forte sentido maternal, que os ocidentais costumavam atribuir às mulheres na época de Mead. Já entre os Mundugumur, homens e mulheres exibiam a personalidade agressiva, ambiciosa e implacável que caracterizava o sexo masculino nos anos 1930. Entre os Tchambuli, por sua vez, havia uma inversãodisso tudo e, ao passo que as mulheres eram os parceiros dominantes, os homens eram os dominados.
Quer saber mais sobre o assunto? Leia até o fim essa entrevista fictícia, que conta com os trechos mais interessantes do livro mencionado!
Antes de mais nada, Miss Mead, a senhora poderia falar um pouco a respeito das diferenças que podem ser observadas entre as culturas?
O homem construiu para si mesmo uma trama de cultura em cujo interior cada existência humana foi dignificada pela forma e pelo significado. Desse modo, o homem não tornou-se simplesmente um dos animais que acasalavam, lutavam por alimento e morriam, mas um ser humano, com um nome, uma posição e um deus. Trata-se de uma espécie peculiar de tessitura, que cada povo constrói de maneira diferente; escolhe determinados novelos e não atribui semelhante importância a outros, e acentua um setor diferente da gama das potencialidades humanas. E, dentro das sociedades, cada geração nova é amoldada firme e definitivamente às tendências dominantes.
E quanto aos indivíduos que pertencem a uma determinada sociedade?
Nessas circunstâncias, assim como cada cultura cria de maneira distinta a tessitura social em que o espírito humano pode enredar-se com segurança e compreensão, classificando, recompondo e rejeitando fios na tradição histórica que compartilha com povos vizinhos, pode inclinar cada indivíduo nascido dentro dela a uma espécie de comportamento, que não reconhce idade nem sexo como motivos para elaboração diferencial. Caso contrário, uma cultura apodera-se dos fatos realmente óbvios de diferença de idade, sexo, força ou beleza, e até mesmo das variações inusuais, tais como o pendor nato à visões ou a sonhos, e converte-os em temas culturais dominantes.
A senhora poderia nos oferecer um exemplo?
Os aborígenes da Sibéria elevaram os indivíduos de instabilidade nervosa à dignidade de xamã, cujos pronunciamentos acreditavam ser de inspiração sobrenatural e constituíam lei para os outros membros mais equilibrados da tribo. Parece-nos bastante evidente um caso extremo como esse, onde todo um povo se curva ante a palavra de um indivíduo que classificaríamos de insano. Os siberanos, fantasiosamente e,ao modo de ver da sociedade à qual pertencemos, de modo injustificado, elevaram uma pessoa anormal a um lugar de imensa importância social. Basearam-se num desvio humano que nós desaprovaríamos e que, caso se tornasse de fato importuno, fecharíamos em uma prisão.
E quanto ao foco de sua pesquisa, mais especificamente?
É comum que se acredite que determinadas atitudes temperamentais são “naturalmente” femininas e outras são “naturalmente” masculinas. Com base nisso, estudei essa questão nos plácidos montanheses Arapesh, nos ferozes canibais Mundugumur e nos sofisticados caçadores de cabeça Tchambuli.
Outras pessoas estudaram essa questão antes da senhora?
Os Vaërting abordaram o problema em seu livro The Dominant Sex, no qual inverteram a situação europeia e construíram uma interpretação das sociedades matriarcais onde as mulheres eram altivas, cruéis e dominantes, e os homens eram fracos e submissos. Trata-se de um retrato simples, que na realidade nada acrescentou à compreensão do problema por estar baeado no conceito limitativo de que, se um sexo tem personalidade dominante, o outro tê-la-á submissa. A raiz do equívoco dos Vaërting reside em nossa insistência em contrastar as personalidades dos sexos, em nossa capacidade de ver uma única variação no tema do macho dominante: a do marido dominado.
Trata-se de um equívoco, portanto?
Por mais que toda cultura tenha de algum modo institucionalizado os papéis dos homens e das mulheres, não foi necessariamente em termos de contraste entre as personalidades dos sexos, nem em termos de dominação ou submissão.
A senhora poderia nos falar um pouco a respeito das culturas que investigou durante a pesquisa que empreendeu?
Os Arapesh – homens e mulheres – exibiam uma personalidade que chamaríamos dócil e maternal em seus aspectos parentais e feminina em seus aspectos sexuais. Os homens e as mulheres eram cooperativos, não-agressivos e suscetíveis às exigências alheias. Em acentuado contraste com as atitudes em questão, em meio aos Mundugumur os homens e as mulheres se desenvolviam como indivíduos implacáveis, agresssivos, com o mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade. Homens e mulheres possuíam o tipo de personalidade que em nossa cultura só encontraríamos em um homem dos mais indisciplinados e violentos. Nem os Arapesh nem os Mundugumur tiram proveito de um contraste entre os sexos; o ideal Arapesh é um homem dócil e suscetível, casado com uma mulher dócil e suscetível. Já o ideal Mundugumur é um homem cruel e agressivo, unido a uma mulher cruel e agressiva.
E na terceira tribo, os Tchambuli?
Nesta, nos deparamos com uma legítima inversão das atitudes sexuais da nossa cultura, sendo a mulher o parceiro dirigente, dominador e frio, e o homem a pessoa dependente.
Com base nisso, qual a conclusão que pode ser tirada?
Essas três situações sugerem uma conclusão muito definida. Uma vez que as atitudes em questão temperamental que tradicionalmente reputamos femininas, tais como a doçura, a passividade e a disposição de acalentar crianças, podem ser realmente erigidas como o padrão masculino em uma tribo, e na outra ser prescrita tanto para a maioria dos homens quanto para a maioria das mulheres, não nos resta mais base para considerar os aspectos em questão como ligados ao sexo.
Dessa maneira, o temperamento seria moldado socialmente?
Eu diria que os temperamentos que reputamos naturais a um certo sexo são variações do temperamento humano, aos quais os membros de um ou de ambos os sexos podem, com maior ou menor sucesso no caso de indivíduos essencialmente diversos, ser aproximados através da educação.
A senhora poderia nos oferecer um exemplo?
Quando contrastamos o comportamento típico do homem ou mulher Arapesh com o do típico homem ou mulher Mundugumur, a evidência é esmagadoramente a favor da força de condicionamento social. De nenhuma outra maneira temos a capacidade de dar conta da uniformidade quase completa com que as crianças Arapesh se tornam indivíduos dos mais satisfeitos, passivos e seguros, enquanto as crianças Mundugumur se transformam em pessoas violentas, agressivas e desconfiadas. Apenas ao impacto da cultura integrada sobre a criança em crescimento podemos atribuir a formação dos tipos contrastantes.
O que significa que…
Somos forçados a concluir que a natureza humana é incrivelmente maleável, tendo a capacidade de responder acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes.
Essa conclusão desafia muitas das ideias com as quais estamos acostumados a lidar.
Com efeito, tais coisas podem parecer peculiares a uma civilização que, em sua medicina, sua sociologia, em sua gíria, em sua poesia e mesmo em sua obscenidade admite para as diferenças socialmente definidas entre os sexos uma base inata no temperamento.
E essa base inata inexiste?
Creio que as padronizadas diferenças de personalidade entre os sexos são meras criações culturais às quais cada geração, masculina e feminina, é treinada a conformar-se.
E é usual que todas as pessoas sejam moldadas de acordo com tal influência cultural?
Uma cultura empenhada em determinado rumo pode inclinar cada criança a esse tipo de comportamento:algumas a um perfeito acordo com ele e a maioria a uma fácil aceitação, enquanto somente alguns poucos desajustados deixam de receber o carimbo cultural.
Nesse contexto, quem seria o desajustado?
Em resumo, o desajustado seria aquele indivíduo cuja disposição inata é tão incomum à personalidade social exigida por sua cultura para a sua idade, sexo ou casta, que não terá jamais a capacidade de usar com a devida perfeição a vestimenta de personalidade que a sua sociedade lhe confeccionou. Esta é uma pessoa para quem as ênfases mais essenciais de sua sociedade parecem absurdas, irreais, insustentáveis ou inteiramente equivocadas. O homem mediano, em qualquer sociedade, perscruta o próprio coração e nele encontra um reflexo do mundo à sua volta. O processo educacional que o tornou adulto assegurou-lhe essa pertinência espiritual à sua própria sociedade. Isso, no entanto, não é verdadeiro no caso do indivíduo para cujos dotes temperamentais a sua sociedade não tem emprego, e nem sequer tolerância.
Em sociedades nas quais existe uma determinada ênfase em características atribuídas a um dos sexos em detrimento do outro, quem é o inadaptado?
Os inadaptados em questão são aqueles cujo ajustamento à vida é condicionado pela sua afinidade temperamental com um tipo de comportamento tido como inatural ao seu sexo e natural ao sexo oposto. A fim de produzir esse tipo de desajuste, faz-se essencial não só uma personalidade social definida e aprovada, mas é igualmente necessário que esta seja rigidamente limitada a um dos sexos.
Existiria, nesses casos, uma coerção exercida com o intuito de convencer um indivíduo a comportar-se como membro de seu próprio sexo?
Consideremos, em um primeiro momento, a forma através da qual as crianças de nossas culturas são pressionadas à submissão. A ameaça constante de que não irá se comportar como membro de seu próprio sexo é usada para impor mil detalhes de rotina educacional e asseio, maneiras de sentar e descansar, ideias de esportividade e honestidade, padrões de expressão de emoções e uma multidão de outros pontos em que podemos reconhecer diferenças de sexo socialmente definidas, tais como limites de vaidade pessoa, interesse em roupas ou em acontecimentos atuais.
A senhora afirma que uma sociedade que se sustenta nas diferenças entre o temperamento masculino e feminino cria inconveniências não somente aos “desajustados”, mas também àqueles que “cumprem o seu papel” e agem de acordo com a expectativa colocada sobre eles. Por quê?
Considera-se com frequência que em uma sociedade que qualifica os homenscomo fortes e dominadores e as mulheres como dóceis e submissas os indivíduos desajustados serão as mulheres fortes e dominadoras e os homens dóceis e submissos. Mas consideremos a posição do menino naturalmente dotado de temperamento agressivo e dominador, e que foi educado na crença de que é seu papel dominar mulheres submissas. Ele será treinado a reagir ao comportamento receptivo e submisso em outrem com uma demonstração de agressividade autoconsciente. Ensinou-se a este homem que dominar é a medida de sua masculinidade, de modo que a obediência de seus companheiros o tranquiliza. Mas, caso se deparar com uma mulher tão dominadora quanto ele próprio, uma dúvida sobre a sua própria masculinidade poderá se instalar em sua mente.
Por que motivo isso aconteceria?
Pois a sua segurança na convicção de pertencer ao seu próprio sexo se apóia na ausência de ocorrência de personalidade semelhante no sexo oposto.
Ah!
Dessa maneira, a existência em uma certa sociedade de uma dicotomia de personalidade determinada pelo sexo, limitada pelo sexo, pune em maior ou menor grau todo indivíduo que nasce em seu âmbito.
Falemos agora de soluções. Não seria o bastante abolir as divergências entre os sexos, certo?
Em determinados momentos, a ideia de posição social transcendeu as categorias de sexo. Em uma sociedade que reconhece gradações de riqueza ou hierarquia, é aceitável que as mulheres de categoria ou riqueza expressem uma arrogância negada aos humildes. Uma semelhante alteração consistiu em um passo adiante na emancipação feminina, mas não na maior liberdade dos indivíduos. Algumas mulheres compartilharam a personalidade das classes superiores, mas para contrabalançar esse fato numerosos homens e mulheres viram-se condenados a uma personalidade caracterizada pela subserviência e pelo medo. Tais alterações significam meramente a substituição de um padrão arbitrário por outro. Romper uma linha de divisão e substitui-la por outra não representa um avanço real. Só desloca a irrelevância a um ponto diferente.
Desse maneira, como a senhora acredita que essa questão poderia começar a ser resolvida?
Assim como a sociedade ocidental permite atualmente a prática de uma arte a membros de sexos diversos, deveria permitir a ambos o desenvolvimento de dotes temperamentais que apresentem contrastes. Nenhuma criança deveria ser implacavelmente amoldada a um padrão de comportamento, mas, em vez disso, deveriam existir numerosos padrões, em um mundo que aprendeu a autorizar a cada indivíduo o padrão mais compatível com seus dotes.
Algo mais a dizer?
Se quisermos alcançar uma cultura mais rica em valores contrastantes, é necessário que conheçamos toda a gama das potencialidades humanas e teçamos uma estrutura social menos arbitrária, na qual cada dote humano diferente encontre um lugar adequado.
O que você pensa?